Ontem foi realizada a primeira fase do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM 2017). Os assuntos mais comentados sobre o “evento”, obviamente foram o atraso dos “astros” e “estrelas” dignos de uma estrela na calçada da fama em Hollywood devido ao alto nível de interpretações em gêneros como drama, comédia, suspense nos portões dos locais de prova. O segundo assunto mais comentado por candidatos, professores e especialistas com certeza ficou para ele o magnífico, esplendoroso o protagonista do evento: TEMA DA REDAÇÃO.
Antes de continuarmos, permita-me destilar uma pequena dose de “veneno” que está escorrendo aqui no canto da boca e encharcando a ponta dos dedos no teclado...
Ideologia de gênero era “UM DOS” temas mais cotados pra cair na redação deste ano. O motivo? No ultimo ano a “ascensão” de algumas “personalidades” ou “subcelebridades” trans, foi um impulso pra tal crença de professores, candidatos e especialistas no exame nacional do ensino médio. Uma enorme discussão sobre a temática tomou uma proporção dantesca nos últimos meses em todas as redes sociais. Ativistas, simpatizantes, protestantes, leigos, cultos, jornalistas, juristas, pais, filhos... Enfim, a sociedade foi “cutucada” pra debater o tema. Alguns brigaram, outros se bateram, parte chegou numa conclusão, pais protestaram mega revoltados com a proposta de o assunto ir pra dentro das salas de aula, outros apoiam e estão super “zen” com a questão. Profissionais foram demitidos por se posicionarem contra ou a favor. Psiquiatras, psicólogos, médicos, antropólogos, filósofos se posicionaram como super mega especialistas... Um “zona” de informações, teses, opiniões invadiram nosso Brasil. De um lado radicais do contra propuseram boicotar marcas, promoveram petições, projetos de leis etc... Do outro lado outros radicais, os da concordância, querem que o mundo “engula” todas as suas teses e ponto final. Resumindo... Todo esse “auê” foi um forte propulsor pras apostas sobre o TEMA DA REDAÇÃO deste ano ser a “ideologia de gênero”.
Com certeza todo mundo tem uma opinião formada e muito concreta sobre o assunto. Isso é um fato. Mas outros temas eram esperados como “Até que ponto o SUS é eficaz?”; “A gestão do sistema prisional brasileiro”; “A evolução da poluição ambiental”; “Vacinação ou anti-vacinação?”; “Os poderes das redes sociais”; “Crescimento da população idosa”; “Crimes virtuais. Quais as causas, como prevenir?” “... Enfim, muitas apostas. Entretanto os apostadores foram surpreendidos pelo tema “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”.
– “Como assim?”; “Por essa eu não esperava!”; “Tô fud!%@”; “Mizéeericódia Gêzuis Krintin”; “Valei-me ‘nocinhora’ das regras da nova ortografia!”; “Cacilds”.
Esses foram os pensamentos que dominaram as cabeças dos que estavam mais que preparados pra dissertarem e sambarem na cara da sociedade, quando tomassem conhecimento do tema na redação e quando pegassem suas notas. Confesso que esse ano eu queria ser fiscal de sala só pra eu ver as carinhas assustadas e desorientadas dos nossos futuros médicos, advogados, professores, políticos, jornalistas, psicólogos etc. quando abrissem o caderno de redação.
O futuro da nossa economia, saúde, segurança, cultura, educação, política internacional, o futuro de nossos filhos, netos... Cada um que compõe esse futuro e que participou ontem da primeira etapa do ENEM, não estão preparados pra dissertarem-argumentarem sobre acessibilidade, inclusão, descrevendo e explicando os desafios para uma formação educacional de qualidade e igualdade.
Antes de escrever esse texto, fiz uma breve pesquisa nas redes sociais e deparei-me com postagens, comentários medíocres, absurdos sobre a escolha do INEP pra redação. Outros candidatos postaram em tom de humor o desespero por não saberem escrever sobre o assunto:
Caro leitor, eu confesso que ainda me surpreendo com o brasileiro frente a questões sociais e assuntos sérios. Tudo é interpretado como “piada”. Não estou afirmando que devemos ser ranzinzas frentes as dificuldades. Mas me assusto quando numa rodinha de amigos, o assunto que reina é o futebol, a novela e obviamente muita piada com assuntos importantes como política, economia, segurança, mobilidade urbana, acessibilidade, inclusão etc.
É grotesco perceber que grande parte dos candidatos teve uma enorme dificuldade pra defenderem suas opiniões, convencendo a si mesma e aos “corretores” sobre a importância em se falar das dificuldades, das conquistas, ressaltar o direito dos surdos, os deveres das instituições de ensino, enfim argumentarem a realidade dos desafios para a formação educacional dos alunos com deficiência auditiva no Brasil.
Quando falamos em acessibilidade, uma das primeiras coisas que nos vêm à cabeça são rampas, elevadores, vagas preferenciais etc. Eu tendo deficiência múltipla, ressaltando minha deficiência física, às vezes peco em questionar a acessibilidade, a inclusão dos outros deficientes como os cegos, os autistas, os amigos amputados, anões, os SURDOS nossos grandes protagonistas de hoje e do ENEM, meu povo!
Eu numa cadeira de rodas, com baixa estatura, gravíssima deficiência metabólica enfrentei (enfrento) grandes desafios na minha formação educacional como profissionais despreparados pra lidarem com minhas demandas dentro de sala de aula, falta de móveis e estruturas adaptadas nas escolas, centros educacionais, faculdades, escola de música, de idioma etc. Tenho o desafio de ser “aceito” como um aluno regular que detêm direitos e deveres etc. Mas hoje não estou aqui pra focar nos meus desafios. Vamos seguir a proposta do ENEM.
Meus coleguinhas surdos, surdinhos e surdões enfrentam muitos, mas são muitos desafios nas instituições educacionais. Deixa-me pontuar algumas comparações:
Túlio Mendhes (um moço gente finíssima e super humilde, você precisa conhecê-lo), 29 anos, estudante de Direito, aluno de inglês, alemão e francês. Ex-aluno do conservatório estadual de música, aluno de uma instituição de coaching.
Na faculdade de Direito, a instituição adaptou elevadores, rampas, banheiros, portas largas, vaga preferencial no estacionamento, rampa de acessibilidade nas esquinas do prédio, monitores pra auxiliarem na biblioteca, móveis adequados pra o encaixe da cadeira de rodas, lanchonete com rampa, na sala de aula tomada num cantinho pra carregar a bateria da cadeira etc.
Em sala eu sou muito falante e participativo. Sem um “pinguinho” de falsa e melosa modéstia, tenho espírito de liderança e muita persuasão que fazem com que eu me comunique com muita facilidade com colegas e profissionais da instituição.
Se o professor é um “borra botas”, eu reclamo expressando meu descontentamento. Se um colega me desrespeita me tratando como um desigual, eu boto a boca no trombone e me defendo com um mega discurso acalorado e diplomático, fazendo com que os outros, comprem minha “briga”. Quando a aula é boa, eu comento, elogio, pontuo o conteúdo numa roda de conversa lá no pátio e muitas outras coisinhas básicas de um universitário “nerdzinho” e chato.
Nas aulas de inglês, alemão e francês bancava o mesmo aluno da faculdade. Exigente, participativo, comunicativo. A escola não era nada acessível, tinha bebedouros altos, guichês mega altos, banheiros sem adaptação, ausência de estacionamento preferencial e pra piorar, profissionais totalmente despreparados pra compreenderem minhas NECESSIDADES como aluno. Por exemplo, entregar meus trabalhos digitados, pois sou limitado na escrita à mão, escrevo, mas pouco e o básico, ou seja, não consigo acompanhar uma aula fazendo anotações em cadernos, apostilas... PRECISO do meu parceiro “SAM” (abreviação pra o nome do notebook moderníssimo que ganhei de mamãe) pra conseguir acompanhar o conteúdo sem ficar pra trás em comparação aos colegas. MAS, CONTUDO, PORTANTO eu sempre reclamei, questionei, cobrei, fiz com que enxergassem minhas necessidades como aluno. Consegui passar uma mensagem clara sobre cada problema e possíveis soluções.
No conservatório de música eu não tive adaptação em nada, definitivamente NADA. Minhas salas de musicalização, de canto coral, piano clássico (sim, amor, eu sou pianista clássico, tá?), as aulas de canto individual, violão não me ofereciam “neca de pitibiribas” de acessibilidade. Os móveis sem nenhuma adaptação, mesas de braço, eu precisava posicionar minha cadeira num local em que atrapalhava a circulação dos colegas. Banheiros? Nunca usei, pois minha cadeira não entrava em nenhum box. Não sei como está atualmente, afinal tem alguns anos que me afastei da instituição. Porém, assim como na escola de idiomas eu sempre cobrei, dissertei inúmeras reclamações em discursos com a coordenação, em conversas no intervalo conseguia fazer com que colegas abraçassem minha causa após alguns minutos de conversa, sempre usando uma linguagem racional e objetiva sobre cada demanda eu conseguia fazer com que me entendessem. Assim foi na instituição onde minha coach me atendia. No início nada de acessibilidade, mas depois de muitas conversas, compreenderam meus discursos e ajeitaram algumas coisinhas que facilitaram minha vida como coachee.
Ponto. Simples e conciso. Tá eu concordo, nada de conciso, mas simples de entender meus desafios de acessibilidade nas instituições que frequento ou frequentei. Agora imagine esse carinha metido a jornalista e seu blogueiro favorito, sendo um negão alto com 1m a mais do que tenho, um negão com 1,97cm de altura, uns 85kg, fortão, pernas torneadas por causa do futebol e séries na academia, corpão de atleta. Sem cadeira de rodas, sem nenhuma deficiência física ou visível a olho nu. Eu, esse negão descrito sendo SURDO e frequentando as mesmas instituições que estudei ou estudo. Vamos lá.
Chego à faculdade de Direito, não “tô” nem aí pra elevadores ou rampas, pois sou um negão sarado que pode e opta em usar escadas. Consigo usar qualquer banheiro, não me preocupo com a largura das portas, não faço questão de vaga preferencial, pois vou de moto e estaciono onde couber minha máquina, a propósito seria uma Harley-Davidson CVO Street Glide azul. Não dependo de nada acessível na estrutura do prédio. Será?
Continue me imaginando esse negão fortão lá na escola de idiomas, no conservatório de música e na escola de coaching. Da mesma maneira que dispenso acessibilidade arquitetônica na faculdade, eu também faço nessas outras instituições. Eu ando minha gente. Mas repito a pergunta. Por eu ser surdo, será que não dependo de nenhum tipo de acessibilidade nesses ambientes educacionais?
Minha surdez, minha deficiência auditiva não encontrará nenhum DESAFIO a ser superado? O ambiente educacional usa uma mesma LINGUAGEM para todos os seus alunos? Se meu professor de Direito Constitucional for daqueles que ditam a constituição pra os alunos pontuarem artigo por artigo, parágrafo e incisos... Como que eu SURDÃO, negão e lindão conseguirei acompanhar o método do ilustre professor?
A linguagem usada pra os 41 colegas pode até ser a mesma. Entretanto eu sou o número 42 (me senti nome de filme), sou aluno tanto quanto os demais, mas sou surdo e não estou compreendendo nada que os colegas estão entendo com a linguagem, a abordagem do professor... “Nadica” de nada faz nenhum sentido pra mim. Fico perdido. “Boio” literalmente. Minha mente entra num colapso:
– “EI, PROFESSOR... EU SOU SURDO!”, “Professor, olha aqui cara, eu não tô te ouvindo seu Zé Ruela”... “Pô ninguém tá me ouvindo, não?”... DEEER, lógico que ninguém tá me ouvindo, eu sou surdo e mudo, esqueceu “manézão”?
O grande desafio dentro de sala de aula é que compreendam o aluno com surdez, a outra vertente desse desafio é ser compreendido, ter colegas, profissionais que saibam se comunicar com deficientes auditivos.
A Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002, regulamenta e dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. No Capítulo I trata da inclusão da libras como componente curricular, lá no art 1º afirma que LIBRAS é um componente curricular obrigatório nos cursos de FORMAÇÃO DE PROFESSORES para o exercício do MAGISTÉRIO, em NÍVEL MÉDIO e SUPERIOR, e nos cursos de FONOAUDIOLOGIA, de instituições de ensino públicas e privadas, do sistema federal de ensino. O § 1º completa afirmando que “todos os cursos de licenciatura, o curso normal superior, o curso de pedagogia e o curso de educação especial serão considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.”
Bonitinho, né?
Tudo na teoria é muito, muito glamouroso e lindo. A prática é igual os bastidores de palcos de shows. Uma zona, uma bagunça “organizada”, só quem tá lá dentro é que consegue entender como que aquele “fuzuê” funciona. Na verdade o que mais tem nos bastidores são remendos, gambiarras, o famoso jeitinho brasileiro. Tudo muito típico de nossas legislações e a cegueira do nosso judiciário.
Essa tipicidade marota em burlar leis e, a cegueira dos agentes que devem garantir o cumprimento das mesmas leis... Isso é o GRANDE desafio para a formação educacional dos meus amigos surdos aqui no Brasil.
Como que eles serão compreendidos dentro do ambiente acadêmico se os profissionais não tem noção de como se comunicar com eles?
Volte a me imaginar grandão, andante, negão e SURDO. Qual a solução pra eu expressar minha indignação? Fazer reclamações com uma linguagem clara e objetiva dentro das instituições educacionais, assim como eu fazia enquanto cadeirante, falante e ouvinte? Isso é ou não outro desafio pra formação das pessoas surdas?
Nosso Plano Nacional de Educação (PNE) estipulou algumas metas como a universalização do acesso à educação básica para a população com deficiência, matriculadas preferencialmente na rede regular de ensino e que tenham entre 4 a 17 anos.
– “Ok, mas qual o objetivo disso, Túlio?
– Simples (deveria ser)... Nossa constituição, especificamente no art 5º (você vai acabar decorando esse maravilhoso e lindo artigo), diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à VIDA, à LIBERDADE, à IGUALDADE, à SEGURANÇA e à PROPRIEDADE (...)”
Ou seja, já que TODOS NÓS temos os mesmos direitos e deveres... Direitos invioláveis como a IGUALDADE, é fácil concluir que a meta estipulada pelo PNE tem como princípio a EDUCAÇÃO IGUALITÁRIA para TODOS. Em todos os níveis, TODOS devem aprender e se desenvolver com equidade e JUNTOS, sem distinção de qualquer natureza... Essa “QUALQUER” natureza, significa que cadeirantes e andantes tem o mesmo direito. Cegos e pessoas sem deficiência visual, os ouvintes e os surdos também devem usufruir da equidade e qualidade do ensino, SEM DISTINÇÃO... Vou repetir só pra não esquecer, SEM DISTINÇÃO!
Essa distinção é outro DESAFIO encontrado pelos alunos surdos durante sua formação educacional. Caro leitor, o sistema educacional brasileiro é uma vergonha no quesito INCLUSÃO. Tudo tem que ser resolvido na base de liminares, ações, mandados de segurança. Os responsáveis por alunos com deficiência geralmente recorrem à influência e poder de voz na mídia pra conseguirem que direitos básicos de seus filhos, netos, sobrinhos, afilhados, enteados sejam respeitados. Direitos como a EDUCAÇÃO IGUALITÁRIA, uma educação que zele pela inclusão de todos, respeitando as limitações de TODOS.
Quer saber outro DESAFIO encontrado por alunos com deficiência, mas especificamente alunos surdos? A SOCIALIZAÇÃO dentro das instituições de ensino. Eu estudei com uma querida colega surda (mas a infeliz conversava mais do que eu discursando num plenário), na hora do intervalo sentávamos ou saíamos juntos, eu, ela e um grupinho seleto que conseguia compreender e se comunicar com ela. Nós éramos seus parceiros sociais. Mas e os profissionais que lidavam com uma surda maritaca e um aleijado que adorava bater perna? Eles estavam preparados pra esses desafios em suas salas de aula? E se a maritaca ruim do “zovido” estudasse em outra instituição que não tivesse ninguém pra ela se socializar sem constrangimento? Isso é ou não um grande DESAFIO que os candidatos do ENEM poderiam dissertar em suas redações?
Situações básicas e necessárias no dia a dia de uma pessoa com deficiência, torna-se grandes DESAFIOS pra sociedade argumentar, pra candidatos de um exame nacional do ensino médio se desesperarem por não terem noção do que defenderem quando temas como esse são abordados.
Dentro da lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002, você caro leitor, pode encontrar tudo que diz respeito à regulamentação e disposição sobre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), inclusive pra formação educacional dos colegas surdos e estudiosos que lidam, enfrentam, superam inúmeros DESAFIOS como o do ESPANTO na escolha do INEP sobre o bendito tema que deixou muita gente com a orelha quente.
Pra concluir, defendo a ideia de que não adianta o ambiente oferecer espaços e recursos multifuncionais, super, mega, power, blasters planejados arquitetonicamente e tecnologicamente, manter seus docentes qualificados pra lidarem com nosso público, mas não ofertarem RESPEITO e ALTRUÍSMO para nós alunos surdos, cegos, autistas, cadeirantes, amputados, anões ou com qualquer tipo de deficiência.
O maior desafio para nossa formação educacional aqui no Brasil é CONQUISTARMOS NOSSA DIGNIDADE COMO PESSOA HUMANA!
Bom, caro leitor, mais uma vez obrigadíssimo pela visita, obrigado ainda por se interessar nos assuntos desse “universo” que busca a igualdade em todos os sentidos, é muito bom contar com seu apoio, com sua audiência. Mas me conta... Você ficou com alguma dúvida, tem alguma sugestão, crítica, reclamação? Não hesite entrar em contato comigo, será um prazer interagir com você! Meus e-mails são: tulio.mendhes@tvintegracao.com.br / maonaroda@tvintegracao.com.br. Até a próxima postagem com a graça de Deus. Ah não se esqueça de compartilhar